06 jul 2022

Sob o ponto de vista ético, o médico do trabalho pode atender em seu consultório particular o mesmo paciente que ele atende na empresa aonde trabalha?

postado em: Coluna do Puy

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Caro leitor, em uma noite junina aleatória fui perguntado por um amigo e colega sobre esta situação que hoje leva o título deste artigo.

Antes de tentarmos responder esta complexa indagação sob o ponto de vista ético, permita-me trazer o contexto atual da especialidade (Medicina do Trabalho).

I – Breve introdução do contexto da Medicina do Trabalho:

Conforme estudo recente de 2020 (1), a Medicina do Trabalho é uma das especialidades que concentram maior quantidade de profissionais médicos, vale dizer, 4,6% da população total ou 19.797 profissionais em todo país.

Dentre as 55 especialidades reconhecidas pelo CFM, é a sexta maior em termos populacionais, ficando atrás somente da Clínica Médica (11,3%), Pediatria (10,1%), Cirurgia Geral (8,9%), Ginecologia e Obstetrícia (7,7%) e Anestesiologia (5,9%).

Curiosamente, a Medicina do Trabalho é terceira especialidade com maior média etária (58,4 anos), semelhante à Medicina Legal e Perícia Médica (57,9 anos), ficando atrás somente da Homeopatia (61,6 anos) e Patologia clínica/Medicina Laboratorial (60,1 anos).

Ao verificar que a média etária do referido especialista beira os 60 anos, é totalmente compreensível que estes profissionais tenham outra formação acadêmica durante a longa trajetória profissional.

O Médico do Trabalho possui grande “background” técnico-prático, de forma geral.

Dos 19.797 Médicos do Trabalho no Brasil, cerca de 75% destes possuem outra especialidade registrada: são, especialmente, Clínicos gerais, Ginecologistas e Obstetras, Pediatras, Cirurgiões Gerais, Ortopedistas, Cardiologistas, Médicos da Família, Psiquiatras, dentre outros.

Figura nº 01 – Panorama do Médico do Trabalho no Brasil em 2020 – Fonte:  https://www.fm.usp.br/fmusp/conteudo/DemografiaMedica2020_9DEZ.pdf – acessado em 18/06/2022

Portanto, frequentemente temos a situação que o médico atua em duas especialidades, no caso a Medicina do Trabalho e outra diversa, especialmente no âmbito assistencial.

Eis que é vertente a dúvida: do ponto de vista ético, posso atuar, por exemplo, como Ortopedista no meu consultório particular e concomitantemente trabalhar como Médico do Trabalho na empresa no qual sou vinculado e atender o mesmo paciente/trabalhador em ambas instituições?

À prioristicamente, o colega poderia responder:

“- Rodrigo, sem chance de ocorrer qualquer possibilidade de desvio ético! São dois mundos diferentes, a Medicina do Trabalho é uma especialidade que tem o foco prevencionista, ao passo que se atendo o paciente enquanto Ortopedista o faço com viés assistencial no diagnóstico e tratamento de doenças! Logo não haveria qualquer sobreposição das atividades.

De fato, este primeiro argumento levantado é, em parte, deveras certo. Conforme o item 4.12, alínea l, da NR-4, temos:

as atividades dos profissionais integrantes dos Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho são essencialmente prevencionistas, embora não seja vedado o atendimento de emergência, quando se tornar necessário.” (Grifo nosso).

Mas análise seria assaz reducionista se a resposta se encerrasse apenas no escopo da atividade prevencionista prescrita ao profissional da saúde ocupacional.

Sem delongas, a resposta é: DEPENDE, ao meu modo de ver!

Vamos pensar fora da caixa e analisar a situação sob diversos aspectos.

II – Do possível conflito de interesses envolvido no atendimento:

Uma das missões do Código de Ética Médica, CEM (Resolução CFM nº 2217/2018), é reforçar a regra do compromisso ético da categoria com o bem-estar e a saúde dos pacientes, coibindo interações com fim de lucro, incompatíveis com os princípios da boa medicina.

Neste sentido, o princípio fundamental IX do CEM estabelece que a medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio.

Portanto, o Médico do Trabalho não deve se valer do ambulatório da empresa como ferramenta para angariar/cooptar trabalhadores para sua clínica privada e auferir seleção qualificada de pacientes, sob o pretexto de que poderia realizar “atendimento integral” à queixa relacionada.

Estaria, pelo menos em tese, o profissional infringindo o art. 40 do CEM, se restar comprovado o benefício financeiro decorrente da relação entre o Médico do Trabalho e o paciente:

“Art. 40. Aproveitar-se de situações decorrentes da relação médico-paciente para obter vantagem física, emocional, financeira ou de qualquer outra natureza. ” (Grifo nosso)

Por outro lado, sendo o vínculo público de trabalho, o Médico do Trabalho também poderia estar em tese infringindo concomitantemente o art. 64 do CEM:

“Art. 64. Agenciar, aliciar ou desviar, por qualquer meio, para clínica particular ou instituições de qualquer natureza, paciente atendido pelo sistema público de saúde ou dele utilizar-se para a execução de procedimentos médicos em sua clínica privada como forma de obter vantagens pessoais. ” (Grifo nosso)

Vejam bem.

Em que pese a redação restritiva do art. 64 (apenas incorre em infração ética o médico na circunstância de “paciente atendido pelo sistema público de saúde”), entendo que os CFM/CRM’s deverão enfrentar reflexão futura (para uma nova redação do dispositivo) se os agenciamentos/aliciamentos/desvios na rede privada pelo Médico do Trabalho também não deveriam ser contemplados neste artigo.

Ora, qual diferença do ponto de vista ético teria o aliciamento do Médico do Trabalho que atende na empresa privada e coopta pacientes para sua própria clínica de cirurgia plástica, em relação ao profissional de saúde ocupacional vinculado ao SUS? Não vejo qualquer diferença entre as duas (02) circunstâncias, embora a primeira situação HOJE restaria desqualificada a suposta infração pelo art. 64 do CEM.

Do ponto de vista prático, nem sempre é tão fácil demonstrar a infração ética aos dispositivos citados.

III – Do ato médico praticado nas instituições:

A depender das atribuições previstas no contrato de trabalho do Médico do Trabalho, pode ser exigido do profissional que faça atendimentos clínico-ocupacionais de possíveis intercorrências que os trabalhadores possam por ventura necessitar durante a jornada de trabalho.

Vale dizer, seja em virtude de algum acidente, seja pela exposição nociva a determinado agente relacionado a risco ocupacional envolvido no exercício da função.

Portanto, pode haver algum sombreamento nas tarefas desempenhadas pelo médico na empresa e na clínica, especialmente quando envolver atendimento clínico.

Exemplo: Sou Médico do Trabalho e Ortopedista em cidade de grande porte no qual há ampla rede assistencial credenciada privada e pública.

Realizo como Médico do Trabalho os primeiros socorros de uma fratura em fêmur direito em trabalhador no ambiente laboral. Devo indicar meus serviços de cirurgia e “follow up” ambulatorial, considerando que não sou o único profissional com expertise na região?

Preliminarmente, vejamos a primeira reflexão que deve o médico realizar:

“- Sou o único profissional na região qualificado para fazer o acompanhamento do paciente ou existem colegas para realizar também este atendimento? ”

O questionamento deve contemplar dois viéses:

1º – Omissão de socorro:

Não havendo outro profissional qualificado para realizar o atendimento assistencial especializado na localidade, deverá o Médico do Trabalho e Ortopedista acompanhar o paciente.

Fundamento: Princípio fundamental VII e arts. 33 e 36, (Código de ética médica) CEM:

“Princípio fundamental VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

É vedado ao médico:

Art. 33 Deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em casos de urgência ou emergência quando não houver outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo.

Art. 36 Abandonar paciente sob seus cuidados.

§ 1° Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que o suceder.

§ 2° Salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou à sua família, o médico não o abandonará por este ter doença crônica ou incurável e continuará a assisti-lo e a propiciar-lhe os cuidados necessários, inclusive os paliativos. ” (Grifo nosso)

Havendo pluralidade de especialistas na localidade, o Médico do Trabalho deve referendar as opções dos serviços assistenciais, em benefício do paciente. Competirá ao enfermo (ou seu representante legal) deliberar acerca de onde fará seu tratamento.

Considerando que o paciente confie seus cuidados ao próprio Médico do Trabalho ou este seja o único especialista na localidade, passemos para a segunda reflexão.

2º – Dupla cobrança pelo serviço prestado:

Competirá o médico realizar o atendimento integral do paciente, todavia deverá receber honorários apenas pelos procedimentos realizados alhures ao ambulatório de saúde ocupacional.

Fundamento: art. 66, CEM:

“É vedado ao médico:

Art. 66. Praticar dupla cobrança por ato médico realizado. ”

Ressaltamos que este profissional deverá realizar a condução do caso com todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente, e não devendo realizar atos desnecessários, conforme art. 35, CEM:

 “É vedado ao médico:

Art. 35. Exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico, complicar a terapêutica ou exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos. ”

IV – Da suspeição de isenção profissional no exercício interativo a atividade médica assistencial e o exercício da função da Medicina do Trabalho:

Importante ressaltar que dentre o rol de atribuições que devem ser desempenhadas pelo Médico do Trabalho na empresa, delas podem estar previstas a atividade pericial administrativa (homologação de atestados médicos), a realização de juntas médicas, a assistência técnica em perícias judiciais, assim como execução de exames ocupacionais.

Tais tarefas supracitadas correspondem o mister rotineiro de muitos profissionais em SST (saúde e segurança do trabalho) e podem gerar conflito de interesses com a atividade assistencial.

Vejamos a situação de um psiquiatra que atende em seu consultório particular o trabalhador com transtorno misto de ansiedade e depressão (CID-10 F41.2) descompensado e decide por afastá-lo por trinta (30) dias.

Ato contínuo, o mesmo profissional enquanto Médico do Trabalho da empresa realiza a homologação ou avaliação pericial do afastamento do colaborador, cuja licença-saúde foi por ele indicada no ambulatório.

Neste momento fica configurado de forma flagrante o conflito de interesses no exercício profissional, conforme princípio fundamental VIII e art. 20 do CEM, in verbis:

“Princípio fundamental VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem
permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho. ”

“É vedado ao médico:

Art. 20. Permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do financiador público ou privado da assistência à saúde, interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou
tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da sociedade. ”

Sempre relevante trazer à baila a hierarquia dos atestados médicos, prevista na lei nº 605/49, art. 6º, §2º:

“§ 2º A doença será comprovada mediante atestado de médico da instituição da previdência social a que estiver filiado o empregado, e, na falta dêste e sucessivamente, de médico do Serviço Social do Comércio ou da Indústria; de médico da emprêsa ou por ela designado; de médico a serviço de representação federal, estadual ou municipal incumbido de assuntos de higiene ou de saúde pública; ou não existindo êstes, na localidade em que trabalhar, de médico de sua escolha”

De forma muito didática, vale lembrar o modelo piramidal desta hierarquia:

Portanto, o perito previdenciário define a capacidade laborativa do trabalhador, possuindo autonomia para revogar/chancelar o parecer técnico confidencial do Médico do Trabalho junto ao INSS.

No extrato intermediário, o Médico do Trabalho determina a aptidão ao trabalho do colaborador, considerando o contexto profissiográfico na empresa, possuindo autonomia para revogar/chancelar o atestado exarado pelo médico assistente.

Estabilizada a hierarquia legal dos atestados, fica caracterizado o “topos” ou o escopo de atuação de cada médico (perito, do trabalho e assistente), o que torna inviável a sobreposição das atribuições do mundo assistencial versus o mundo pericial.

O mundo assistencial médico tem como princípio basilar a confiança entre as partes para se estabelecer relação médico-paciente empática. O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.

O mundo pericial médico tem como princípios basilares a justiça e imparcialidade na relação perito-periciado. O alvo da atenção pericial é constatar (ou não) um fato ou situação diante das provas a ele apresentadas e elaborar laudo pericial para responder tecnicamente quesitos a ele instados.

Quando o Médico do Trabalho realiza homologação de atestados ou realiza exames ocupacionais (admissionais e retorno ao trabalho, por exemplo) estas atribuições conferem poder pericial enquanto preposto da empresa, maculando sua isenção caso tenha sido médico assistente do paciente, de forma pretérita.

Os arts. 93 e 98 do CEM ratificam este entendimento:

“É vedado ao médico:

Art. 93. Ser perito ou auditor do próprio paciente, de pessoa de sua família ou de qualquer outra com a qual tenha relações capazes de influir em seu trabalho ou de empresa em que atue ou tenha atuado.

Art. 98. Deixar de atuar com absoluta isenção quando designado para servir como perito ou como auditor, bem como ultrapassar os limites de suas atribuições e de sua competência. ”

São estas as considerações mais relevantes sobre o tema.

Um forte abraço a todos!

Autor: Rodrigo Tadeu de Puy e Souza – Médico. Advogado. Pós-Graduado em Medicina do Trabalho. Mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: rodrigodepuy@yahoo.com. Site: www.pimentaportoecoelho.com.br

O Dr. Rodrigo Tadeu de Puy e Souza escreve periodicamente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna do Puy”. Contatos: www.rodrigodepuy.com.br ; e-mail contato@rodrigodepuy.com.br

Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista Rodrigo Tadeu de Puy e Souza, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.

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